Esta é a minha definição de paz.
Cerâmica dura e fria contra cerâmica dura e fria nós somos, através das nossas finas túnicas de tecido. Deixo meus dedos envolverem os dela, mármore tocando mármore. E a conexão entre nós é feita, meu espírito ligando-se ao dela do modo como no fundo sempre estivera ligado. Nem a distância nem o tempo foram capazes de desfazer este elo.
Seu rosto flutua exatamente diante do meu, seus olhos exatamente da mesma altura que os meus. Aproximando meu rosto, beijo suas faces com reverência. Beijo seus lábios. Gélidos e rígidos, como os meus. Mortas, nós duas. Morta estava a pele, estavam os lábios. Mas seus olhos, seus olhos compreensivos e cheios de amor colados nos meus, seus olhos queimavam com a chama da sua alma.
Havíamos sido espelhos uma da outra quando começamos nossa existência neste mundo. Dentro do espaço apertado do útero, sua pele havia sido a primeira a tocar a minha. Enquanto crescíamos, cada sarda, cada pinta, cada pequena variação de tonalidade em nossos olhos verdes haviam sido idênticas. Nossos cabelos, vermelhos e anelados, haviam tido sempre a mesma textura, o mesmo tom... e até no mesmo comprimento os mantínhamos, orgulhosas do espelho que representávamos uma para a outra.
Após milênios sem conta, já não somos mais o espelho exato uma da outra, embora tenhamos ainda os mesmos cabelos e nossas peles tenham, igualmente, adquirido através do tempo esta mesma textura de pedra. Mas hoje, vejo as mudanças óbvias ocorridas em nossos corpos, porque eu já havia perdido minha língua há muito tempo, enquanto que ela havia sido forçada a substituir por olhos azuis aqueles outros que antes haviam sido tão idênticos aos meus. Havia também a diferença em nossa escolha de roupas, porque ela veste-se sempre com um esmero tão grande.
Observo os braceletes em seu punho, adornados com pedrarias e sementes coloridas. Analiso o colar de madrepérola e aquamarina que descansa em seu colo branco. E percebo, com um olhar lento, o tecido suave de seu vestido, o corpete que marca sua cintura abaixo dos seios, e a beleza das faixas de luz que acetinam-se sobre o tafetá azul. Eu uso apenas uma túnica simples, verde-escura de algodão, e sem nenhum adorno. E é assim que pretendo permanecer, porque na verdade não sinto falta de adorno nenhum... e aí está, realmente, a verdadeira mudança que ocorreu, o verdadeiro motivo pelo qual não somos mais o espelho tão perfeito que outrora havíamos sido.
Passamos por vidas diferentes, ela e eu. E isso é perceptível nas marcas que ainda levamos, nas que estão além da nossa escolha, mas também nas que escolhemos por conta própria.
Sinto de repente uma onda de tristeza tão grande que parece as águas revoltas dos mares de outrora, invadindo as praias da minha mente, ameaçando engolfar-me.
Maharet...
Digo seu nome no meu íntimo, sem poder dizê-lo em voz alta, e sem ser capaz de usá-lo para transpôr o imenso muro que dividia nossas mentes. Este muro e o silêncio intransponível que ele representava entre nós eram o suficiente para deixar-me louca de fúria e frustração. Soltando seus dedos, ergo uma das mãos e toco seu rosto. Ela sorri, seu olhar tão doce. E sinto, através do elo das nossas almas, que ela podia ouvir-me, na verdade, porque ela continuava podendo ouvir meu espírito. Ela sente minhas palavras, quando minha boca é tão incapaz de pronunciá-las, e quando nossas mentes são tão incapazes de se comunicarem. Sorrio em retorno, acariciando sua face fria e apertando com a palma da minha mão os dedos que ainda seguro.
Transmito para ela, nesta nossa linguagem sem palavras e sem som, que vai além de qualquer telepatia, tudo o que se passa dentro de mim, tudo o que vejo, tudo o que acredito. Minha mensagem passa, quase palpável, da minha pele para a dela... dos meus dedos para seus dedos... dos meus dedos para seu rosto...
Não se aflija, Mekare, minha irmã eterna... Minha alma permanece o espelho da sua, mesmo quando nossos corpos e nossas mentes encontraram caminhos diferentes para seguir. Sua pele continua sendo a primeira pele que jamais toquei. Seu coração continua em uníssono com o meu..., disse Maharet sem precisar emitir uma única palavra. Sinto meu rosto suavizar enquanto sinto seus braços envolverem meu tronco. Enlaço-a de volta, meu queixo apoiado na concavidade entre seu ombro e seu pescoço.
Seus cabelos ainda possuem o mesmo cheiro que possuíam antigamente, quando brincávamos juntas nas cavernas de nossos ancestrais. E a ligação que ainda possuimos é tudo o que preciso para manter-me inteira... a comunicação que ainda mantemos é o que me basta para o resto da eternidade.
É este elo que sinto, com ela em meus braços, que faz com que eu não sinta falta das palavras, da voz, da língua, do som, da telepatia. Tudo de que preciso, em termos de diálogo, são as mensagens que saem da minha alma para encontrar a dela.