Parte I
Depois da Grande Guerra (1914-1945) não voltei à minha terra. Perdera documentos nos frontes - onde servira como enfermeira quando terminara o Armistício que durou de 18 a 36 - e com a Cortina de Ferro começando a cair, as coisas ficaram complicadas. Mircea, um advogado com quem meu "marido", Alexandru de Timiș, tinha amizade, decidiu tentar resolver a situação. Só conseguiu resolvê-la anos depois, mas isso não é história para esse momento. Sem documentos e sem contato com Alexandru - paramos de nos falar em 1917, mas não para nos separarmos como casal. Simplesmente aconteceu - e profundamente enjoada da Europa, resolvi ir para o Novo Mundo, com uma parte de nossa fortuna - minha e de Alexandru - da qual consegui ter acesso e desejando sinceramente me livrar daquela sensação. Fui parar em Nova Iorque, na casa de um amigo vampiro que se mudara para aquela cidade há tempos. É bastante irônico o fato de eu, pertencente a uma nação da Aliança, resolver me mudar para a terra daqueles que deram a vitória aos Aliados, mas não era. Eu já vivi tempo demais para saber que em uma guerra - ainda mais em tais proporções - não costuma haver anjos. Uma nação não tem culpa pelos erros de seus governantes. Na primeira semana o mal estar piorou. Não pela questão cultural, mas porque eu sentia que o mundo havia acabado. Muitos que estiveram na Guerra também pensam assim. Eu queria morrer de verdade. Mas já quis isso antes e a vontade sumira quando acordava daquele famoso sono... Resolvi que iria dormir até que o Apocalipse de fato acontecesse, pois alguém com certeza iria abrir meu caixão. Meu sono durou até 79.
Acordei em dezembro de 79 com minhas ideias mudadas. Encontrei uma carta de Mircea, enviada havia 2 anos, com meus documentos e tudo o que me permitiria voltar para casa. Mas eu não queria voltar pra casa. Para minha sorte, com o novo governo - o qual me preocupou muito, de acordo com o que Mircea me contava na carta - minha volta seria quase impossível. Resolvi fazer uma vida no Novo Mundo, mas para isso, teria que saber como estava o mundo... E me surpreendi.
As coisas haviam mudado muito. Os nobres já não existiam mais. Os boiardos eram história. As Corporações eram a nova ordem. É fato, a Revolução Industrial minou a nobreza, mas não como agora. Ser mulher havia ganhado outro significado. Viver era outra coisa... E eu estava maravilhada. Eu agradecia à Deus pelo Dom Negro com todas as minhas forças. Se não fosse por isso, eu não teria vivido isso tudo. Não estaria aqui, contando isso pra vocês. Aliás, não estaria aqui. Resolvi arrumar um lugar para mim, comprar roupas, me arrumar... Pela primeira vez na vida usei maquiagem. Para vocês, acostumados com a pintura desde a mais tenra infância, isso soa ridículo, mas para mim, que cresci em um mundo onde apenas as meretrizes se pintavam e que isso era pecado, poder adquirir a aparência que quisesse com a maquiagem era incrível. Eu poderia parecer humana de novo... E percebi que algumas coisas não haviam mudado. A aparência ainda conferia poder. Ainda confere e creio que não vá mudar tão cedo, afinal de contas, vaidade é característica de todas as espécies. Os fins são os mesmos, fora os vampiros, que não se reproduzem de tal forma. Comecei a usar batom vermelho e lápis kajal. Parecia uma gueixa com minha pele branca, mas preferia assim. De alguma forma, minha pele branca iria aparecer... Em uma semana já estava nas rodas de universitários e intelectuais e já tinha alguma noção do que andava acontecendo. E era muita coisa: Guerra Fria, Guerra no Vietnã, Bomba Atômica, Muro de Berlim, a Dama de Ferro e Reagan, as drogas, a psicodelia, a Contracultura de modo geral... E um certo estilo musical chamado Rock'n'roll. Tocava nas rádios o tempo todo. Não absorvi tudo em princípio, era muita coisa, mas uma coisa era certa: aquilo era muito bom...
Na última noite de 1979, após me alimentar, fui celebrar o ano novo no Central Park. Enquanto começava a refletir - como faço desde que virei vampira - sobre a humanidade, percebi uma presença familiar. E não acreditei no que meus olhos viam. O nome dele era Wihelm. Devia ter uns vinte anos e, apesar de discordar da ideologia nazista, foi - como muitos na Alemanha - forçado a servir às tropas na Guerra. Como nossos países eram aliados àquela época, nos cruzamos muito nos frontes. Ele era um bom homem. Cabelo louro, olhos azuis, jovem, cheio de energia e vontade de fazer o que era certo. Tanto, que me ajudara a evitar inúmeros estupros nos frontes, cometidos pelos Aliados e até mesmo por aqueles que estavam ao nosso lado. Pessoas assim precisam da imortalidade. O mundo precisa delas. Mas não o transformei àquela época. E lá estava ele... E era um vampiro agora. Sedento, mas sem um alvo definido. Apesar da situação, a imortalidade lhe caíra muito bem...
_Wihelm?
_Lady Draculea! Como vai? - Ele me cumprimentou, eufórico. Parecia atordoado, mas estava eufórico em me ver.
_O que está fazendo por aqui?
Ele me contou que logo após o fim da Guerra, depois de nos despedirmos, ele foi acertar sua situação como soldado. Um vampiro o mordera e o transformara em um de nós. Os pais haviam morrido ainda na Guerra, durante o ataque dos Aliados, e, assim como eu, estava enjoado do mundo àquela época. A sorte é que conseguira fazer uma vida no Novo Mundo, enquanto eu precisei de... deixe-me ver... uh... "79-46="... 33 anos pra começar a fazer o mesmo?
_Tentei me matar, mas me lembrei de você. Se você chegou até aqui... - Ele sorriu. Não era um sorriso verdadeiro. Havia sarcasmo demais nele para isso. - Mas o que
você está fazendo aqui, desse lado do Muro?
Contei minha situação, mas ele parecia não prestar muita atenção.
_Sede?
Ele confirmou.
_Qual o seu tipo?
_ A escória moral.
Sorri. Temos um gosto em comum, afinal... Rapidamente achei uma presa ideal. Um homem sóbrio que parecia estar tentando namorar. Parecia, porque ao olharmos bem para a escolhida e tentar ouvir seus pensamentos, reconhecemos que ou algum de nós agiria, ou ela seria estuprada diante de nossos olhos. Fiz sinal para Wihelm. Ele percebeu. Se aproximou como um gato e atacou como uma cobra. A moça saiu correndo quando Wihelm conseguiu fazer o homem soltá-la. Meu jovem amigo de Hamburgo silenciou a presa até que o coração desta parasse de bater. Depois estrangulou o corpo já sem vida e o arrastou para uma parte escura. Eram dez para meia-noite, e ele voltara saciado e tranquilo, tal como o conhecia.
_Criativo...
_Sobrevivência, milady...
Comecei a rir e continuamos nosso assunto. Perguntei a ele sobre o Rock. Antes de me explicar qualquer coisa, me perguntou:
_Já ouviu Scorpions?
Perguntei o que viria a ser isso e ele me explicou: uma banda alemã (tinha que ser, pra ter sido mencionada antes de seus antecessores, como Chuck Berry) formada em Hannover e que estava fazendo muito sucesso, principalmente depois que um tal de Matthias Jabs entrou para a banda. Era uma banda de rock ("É mais ou menos assim que a coisa funciona: um vocalista, dois guit..." "Eu sei o que é uma banda, só não sei o que é Rock, pombas!") e que tinha shows marcados nos EUA no ano seguinte.
_Eu vou comprar um ingresso pra mim. - Disse ele, passando a mão sobre meu ombro - Quer ir comigo?
_Você tem material deles para me apresentar? Porque eu não vou a um evento desses completamente desinformada.
Ele concordou em me mostrar os discos e começamos a filosofar, até que a famosa contagem regressiva nos chamou à realidade.
_Fericit Anul Noul...
_Frohes Neues Jahr...
_?
_Para de fingir que não sabe, tô falando o mesmo que você...
Comecei a rir. Ele me abraçou. Os fogos já estavam estourando e eu mal sabia o que o ano de 1980 iria me reservar...